quarta-feira, 3 de junho de 2009


Desde 1906, quando Santos Dumont pilotou o primeiro avião, o 14-Bis, fazendo-o levantar voo com total autonomia, sem a ajuda de uma catapulta (como fizeram três anos antes os irmãos Wright), o mundo se curvou diante dessa invenção. O avião tem mais de 100 anos e segue mantendo uma aura de mistério e classe. Voar sempre foi o maior desejo do homem, e mesmo que hoje cruzem pelo céu milhares de aeronaves que partem e chegam dos mais diversos pontos, ainda assim é um meio de transporte que não se trivializou, e creio que manterá para sempre sua imponência.
Diariamente, vidas se perdem em acidentes de ônibus, de carro, de moto, de barco, e tudo é sempre muito comovedor, pois é o destino interrompendo a trajetória de alguém. Uma vez escutei que a morte de uma única pessoa é sempre uma tragédia, enquanto que a morte de centenas é apenas uma estatística. Uma visão fatalista da realidade, mas que não se aplica aos acidentes aéreos. Recentemente, uma família inteira faleceu durante a explosão de uma aeronave que aterrissava em Trancoso, na Bahia, e ficamos compungidos. Agora são 228 homens e mulheres desaparecidos, e ficamos muito mais. Nenhum desses corpos faz parte de uma estatística, e sim de um mito: a morte coletiva no veículo que é considerado o mais seguro do mundo e, ao mesmo tempo, a morte individual do sonho de cada um dos passageiros e tripulantes. Porque um avião está sempre carregado de sonhos.
A garota que finalmente conseguiu uma bolsa para estudar na Europa. O casal que contava os minutos para sua lua-de-mel. O grupo de amigos que economizou anos para fazer uma longa viagem depois da formatura. O empresário que se preparou para fechar um acordo internacional.
O artista que iria lançar seu trabalho em solo estrangeiro. O jogador de futebol se transferindo de time. A mãe que visitaria a filha pela primeira vez do outro lado do oceano. Um avião transporta todas essas histórias que, para a grande maioria da população, são contos-de-fada.
Mesmo nos voos domésticos, muitos deles precedidos de atrasos e bagunças em aeroportos, a fleuma se mantém. Ninguém esquece a primeira vez em que apertou o cinto e prestou a maior atenção nas informações que a comissária transmitia, com seus braços parecendo asas sinalizando as saídas de emergência. Nervosismo e êxtase: o risco levado a sério.
Então aquele bicho enorme e pesado ganha velocidade e começa a subir. A cidade vai ficando minúscula lá embaixo, as nuvens vão passando ao lado da sua janela, e o dia nublado e chuvoso deixado pra trás transforma-se num céu límpido, descortinado. Poucas horas depois, Rio de Janeiro, Salvador. Outras horas adiante, Londres, Nova York. Isso nunca vai ser considerado banal, por mais milhas que um viajante acumule.
Todas as pessoas têm sonhos, não importa de que tamanho. Todas merecem ser pranteadas, não importa de que modo falecem. Mas há coisas na vida que pertencem a um deslumbramento que não obedece à lógica. Um avião que cumpre a sua trajetória do início ao fim está realizando um passe de mágica com o qual ainda não nos acostumamos, prova disso é o número de gente que, em terra firme, assiste decolagens e aterrisagens como se fosse um espetáculo - e é. Quando a mágica não funciona, voltamos todos a um estado de descrença e dor: a ilusão não se cumpriu.

Martha Medeiros, 03/06/09, Jornal Zero Hora


O caráter acidentado

É um choque quando muitas pessoas morrem na mesma hora, numa mesma situação trágica. Acidente de avião é desestabilizador. Acidentes de ônibus, carro, atropelamentos, todos possuem um teor menor de impacto, mesmo que matem muito mais gente. Já com avião, a catástrofe é cinematográfica e, portanto, está no limiar da ficção - e isso subverte totalmente o que costumamos chamar de vida real.

Junto com a dor, vem a necessidade de culpar. Foi falha humana? Falha de equipamento? Governo omisso? Provavelmente tudo isso, mais o fator imponderável da falta de sorte. Acidentes de avião acontecem na França, na Alemanha, nos Estados Unidos, por motivos vários. O que devemos seguir cobrando com rigor é a responsabilidade pelo caos que acontece todos os dias dentro dos nossos aeroportos, há quase um ano, com atrasos e cancelamentos que não se explicam. Ou que talvez se expliquem se colocarmos o dedo onde dói. No caráter nacional.

O Brasil é um país ótimo em alguns aspectos - natureza, musicalidade, espírito esportivo - , mas traz um gene defeituoso que atinge a nação inteira, mesmo que muitas pessoas se excluam desta análise: "Eu não!" Você não, eu também não, e tantos outros repetirão: nós não! Mas não é momento de se excluir. Todos nós, sim.

O brasileiro, generalizando, sofre de fraqueza moral. A corrupção é um problema que atinge todos os países do mundo, mas aqui esta praga foi institucionalizada, atinge todos os setores, todas as relações de poder, do guarda de trânsito ao presidente. Pais e mães que presenteiam os filhos por tirarem boas notas já estão introduzindo o vírus. Aprende-se que as coisas só funcionam diante de "acertos" prévios. Quando o Gerson fez aquela propaganda de cigarro em que dizia que o importante era levar vantagem em tudo, estava traduzindo exatamente o que somos e pensamos - isso há mais de 30 anos! Foi na mosca. Doeu, de tão verdadeiro. O aceno de uma nota de dinheiro basta para flexibilizar regulamentos, desfazer leis, desrespeitar normas. Temos uma inclinação natural para o lucro a qualquer custo. Claro que há muita gente honesta, mas não em número suficiente para contrabalançar. E mesmo alguns desses honestos têm seu preço.

Eu sei: você não, sua família também não, a minha tampouco. Mas me permita colocar todos no mesmo barco, para não ser mais uma colunista a apontar os defeitos alheios como se estivesse acima do bem e do mal. Mesmo quem nunca fez nada errado, já viu fazer e não denunciou, não berrou, não interferiu. Ninguém é santo neste país, a não ser Frei Galvão, até segunda ordem.

Eu ando cansada de malhar apenas os políticos, como se eles tivessem sido criados em cativeiro, como se todos os homens e mulheres com cargos públicos viessem de um país estranho ao nosso, como se o "eles lá" e "nós aqui" determinasse uma natural fronteira ética. Então eles são a corja e nós as vítimas? Simples assim?

Perdoem-me aqueles trabalhadores corretos e incorruptíveis, sei que são muitos, mas ainda assim, muito poucos. A única saída para o Brasil é uma mudança radical de caráter, uma reeducação avassaladora em todos os lares, em toda a sociedade. Como se faz isso? Talvez privilegiando este assunto no currículo escolar, incentivando a delação dos corruptos que agem em pequenas esferas e havendo muito mais rigor na punição. Mas se os próprios agentes punidores são os primeiros a aceitar uma cervejinha, o que nos resta? Nossa dignidade segue restrita a um blablablá inoperante. Somos os reis da boa intenção, enquanto a gaiatice rola solta, orgulho do Brasil. Desculpem a total falta de esperança, mas para sermos um país decente pra valer, só sendo descobertos de novo.

Martha Medeiros


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